domingo, maio 19, 2024
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Como o comportamento das polícias espelha projetos e ideologias de governos e governantes

Leia a análise

*Jacqueline Muniz, Universidade Federal Fluminense (UFF)

Dois casos emblemáticos de abuso policial foram destaque na mídia nos últimos dias. Em São Paulo, Policiais Militares foram afastados depois de imobilizarem e agredirem um músico negro, jogando spray de pimenta nos seus olhos. Nos Estados Unidos, um homem negro morreu asfixiado durante uma abordagem policial. Antes de morrer o homem repetiu várias vezes a frase “não consigo respirar”, a mesma dita por George Floyd, morto em uma abordagem policial em 2020. A frase se tornou símbolo dos protestos antifascistas contra a violência policial no mundo todo. Aqui no Brasil, com exclusividade para o The Conversation, a socióloga e antropóloga Jacqueline Muniz, conta no texto abaixo porque histórias como essas, noticiadas quase que diariamente nos meios de comunicação, nunca devem ser tratados como casos isolados.

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Dia sim, outro também, são noticiados casos de maus usos e abusos no uso de força por policiais que geram todo tipo de violações e explicitam um desgoverno na capacidade coercitiva da polícia que fundamenta a sua razão de ser em sociedades democráticas, livres e plurais.

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Tem sido lugar comum a manipulação do poder de polícia para fins particulares. Isto demonstra que a autoridade de polícia tem se tornado uma mercadoria política que é negociada nas supostas ações de combate ao crime. Para atender a serventias partidárias, corporativistas e criminosas trata-se esta clientelização do mandato policial e suas manifestações violentas como “mais um caso isolado”. E isto tem servido para ocultar esquemas de corrupção política-policial que não só “produzem estatísticas para governantes”, com saldos operacionais forjados, como também alimentam os caixas 2 de campanha eleitoral com ativos do crime.

O desgoverno policial expresso no uso excessivo de força, nas altas taxas de letalidade e vitimização policiais tem tido um elevado rendimento eleitoral. A capacidade coercitiva de uma polícia materializa as prioridades e escolhas de um determinado governo ou governante. Ela decorre, portanto, da política de direitos humanos e segurança. Ou melhor: do projeto político de um governo que comunica através dos fins, meios e modos policiais autorizados a sua política de direitos humanos e segurança. Que pode ser progressista, liberal, ou extremamente conservadora. Afinal, em qualquer democracia, a polícia é a política em armas.

Governar é controlar a polícia

Cabe ao governo, legitimamente eleito, compor escolhas de meios de força que possam atender às suas metas de direitos humanos e segurança, permitindo a ação bem-sucedida da polícia de acordo com o que seja considerado desejável e tolerável no uso de força policial. Assim, um governo que governa as polícias e não se deixa governar por elas deve exigir, tolerar ou proibir a posse de determinadas capacidades coercitivas, definidas e regradas em termos das circunstâncias e formas do uso de força policial.

É tão somente isto que possibilita exercer governo sobre os recursos estatais coercitivos e produzir previsibilidade, estabilidade e responsabilização no uso concreto do poder de polícia no asfalto e na favela. A definição de capacidades é, pois, condição necessária para a governança da polícia e produção de uma noção correta de responsabilidade policial.

Governar a polícia corresponde a definir e autorizar a sua capacidade coercitiva nas ruas, sob a chancela ou aprovação da própria sociedade que é policiada. Por esta razão, uma doutrina de uso comedido de força, capaz de produzir superioridade de métodos à luz dos fins públicos da política, não se constitui como
reserva técnica sigilosa de tal ou qual governo, tal ou qual organização policial.
Inversamente, ela é transparente, conhecida e validada pela comunidade política articulada em torno de um pacto sociopolítico _ a Constituição Federal _ que delega às polícias o mandato de produção de obediências consentidas às regras legais e legítimas do jogo social por meio de coerções diretas e indiretas consentidas, isto é, com emprego potencial e concreto de força.

Quando a doutrina de uso da força é rebaixada à condição de um pseudo-monopólio de dirigentes, tem‐se como resultado a desgovernança intencional dos meios de força e, com isso, a emancipação predatória do poder de polícia, situação na qual todos perdem e se tornam inseguros em sua ação. Não apenas os cidadãos, mas também os próprios policiais e os governantes.

“Autarquias sem tutela”

Todos se tornam reféns de retóricas defensivas e reativas que buscam os “culpados da vez”, frequentemente os policiais da ponta da linha e os cidadãos comuns, e que servem como escaramuças para seguir sustentando uma responsabilização política difusa ou mesmo garantir a sua impossibilidade diante do escrutínio público.

É, assim, que se perverte as polícias em autarquias sem tutela ou em governos autônomos que chantageiam o governante, silenciam o parlamento e acuam o judiciário.

É assim que se milicia, um fenômeno antigo e já conhecido na história das democracias que emerge quando se promove a ingovernabilidade policial pela emancipação predatória do poder de polícia.

É assim que se possibilita que a espada, emancipada dos controles da sociedade e de seu governo, corte a língua do verbo da política à direita e à esquerda e rasgue a letra da lei.

É assim que se permite que os vigias sentem na cadeira do governante e governem em seu lugar por meio da produção da insegurança pública como um projeto de poder de elevada rentabilidade eleitoral.

Autoridade sem encenações

Compete ao governo autorizar determinados armamentos e alguns de seus modos de uso. E isto corresponde à sua proposta, implícita ou explícita, de segurança e direitos humanos que deve estar aberta ao questionamento público. É, pois, com um projeto de força comedido ou suficiente que se comunica à sociedade as diretrizes de uma política de segurança e de policiamento responsável.

Meios de força são meios invasivos por natureza. Porém, por detrás das decisões e ações policiais nas ruas, há direitos, valores e, sobretudo, governantes que deveriam delimitar a capacidade coercitiva da polícia para poder, de fato, governá‐la. E isso corresponde a ir além de pantomimas com espasmos discursivos acompanhados de semblantes fechados e falas duras que querem fazer acreditar que se mantém autoridade, algum controle, alguma governabilidade, com encenações de macheza contra o crime.

Faz‐se mais que urgente a construção política, federativa, de uma doutrina do uso da força no Brasil que sirva de farol para o aprimoramento das competências e capacidades das polícias, de modo a emprestar publicidade, transparência, segurança e mérito técnico às decisões e ações policiais tomadas no calor dos acontecimentos.

Só assim sairemos do círculo vicioso de buscar culpas abstratas e os suspeitos de sempre, em favor da responsabilização de toda cadeia de comando e controle, desde ação na rua até os gabinetes, que não só blinda a polícia e os policiais da manipulação político-partidária, como também da sua apropriação privatista e corporativa.


A conversa

Jacqueline Muniz, Professora do curso Tecnólogo em Segurança Pública e Social CECIERJ/UFF, Universidade Federal Fluminense (UFF)

Este artigo foi republicado de The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original .

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