O vereador Maicon Gomes de Moraes (PSB), protocolou no dia 31 de março, um Projeto de Lei que “passa o trator” na Lei 1.649 de 19 de dezembro de 2017, de Iniciativa Popular, que proíbe uso de aeronaves na dispersão de agrotóxicos sobre as lavouras e a população em Boa Esperança.
Em letras miúdas, ao propor regularizar o uso de aeronaves remotas (drones) destinados à aplicação de agrotóxicos em propriedades rurais, no fim do Projeto, o vereador propõe que a lei que mobilizou a sociedade em 2017 para proibir a dispersão de agrotóxicos por aviões em Boa Esperança, deixe de valer. Na prática, aviões de veneno poderiam a voltar a atuar no município a contragosto da sociedade, que em 2017, se mobilizou para que esse tipo de atuação, ofensiva à saúde, fosse proibido, como é atualmente.
Esse é um tipo de projeto chamado de “jabuti”. Uma espécie de “contrabando” que os parlamentares fazem ao inserir em uma proposta legislativa um tema sem relação com o texto original. O termo vem de uma frase atribuída ao ex-presidente da Câmara dos Deputados Ulysses Guimarães, que dizia que “jabuti não sobe em árvore. Se está lá, ou foi enchente ou foi mão de gente”.
O vereador Maicon Gomes foi procurado e convidado a se manifestar. Em resposta, ele disse que haverá uma audiência pública no dia 18 de abril (uma terça-feira) para tratar do tema. “Vou sentar com os nobres vereadores e ver se temos que modificar ou melhorar algo no projeto”, disse o vereador.
STF decidiu a favor de lei que proíbe aviões de veneno em Boa Esperança
Em 2018, o Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag) foi derrotado ao ajuizar no Supremo Tribunal Federal (STF), uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 529), com pedido de medida liminar, para questionar a Lei 1.649/2017, do Município de Boa Esperança (ES), que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos na localidade. Na ocasião, a entidade, alegou que lei invadiria a competência da União para regular a matéria.
O STF, por maioria de votos, negou provimento ao pedido do Sindicato. Na ocasião, o relator do caso, ministro Gilmar Mendes, disse que sindicatos não possuem legitimidade para propor a ação, e que a ação do Sindicato em questão ao recorrer à Suprema Corte, era “mero inconformismo” com o vigor da lei popular de Boa Esperança. “Não conheço da arguição de descumprimento de preceito fundamental, por ser manifestamente inadmissível”, disse Gilmar Mendes.
A vontade popular posta em xeque
Boa Esperança faz parte de um grupo de 15 municípios e um estado, o Ceará, que, mesmo diante do lobby do agronegócio, baniram de vez a fumigação aérea. Mas as decisões não foram bem aceitas e, para suspendê-las, alguns gigantes do setor agrícola e de transporte aéreo recorreram até ao Judiciário.
Além de Boa Esperança, outras cidades instituíram leis que proíbem pulverização aérea, a saber: Nova Venécia (ES), Vila Valério (ES), Luz (MG), Elias Fausto (SP), Pratânia (SP), São Manoel do Paraná (PR), Uchoa (SP), Astorga (PR), Glória de Dourados (MS), Lagoa da Prata (MG), Itamarandiba (MG), Abelardo Luz (SC), Campo Magro (PR) e Cianorte (PR).
Mobilização da sociedade
Em 2017, houve uma grande mobilização popular em Boa Esperança, a fim de que a lei de Inciativa Popular, a primeira da história do município, fosse aprovada pelos vereadores da época (e foi por unanimidade). A Lei foi sancionada pelo prefeito da época, Lauro Vieira. Um dos líderes do movimento pela proibição da pulverização aérea foi o padre Romário Hastenreiter. Foram colhidas 2680 assinaturas da população que corroboraram com a proposta.
Em entrevista ao site “Repórter Brasil” na época, o então prefeito Lauro Vieira, que sancionou a lei popular, falou que produtores do estado chegaram a o “emparedar” pedindo que ele vetasse o texto. “Recebi produtores que pediam que eu vetasse, mas já tinha minha convicção”, disse ele. “Quando você pulveriza agrotóxico por aeronaves acaba afetando mais do que a praga que você quer combater. Aqui quando passavam com o avião no final da tarde, à noite ninguém suportava o cheiro. Dava náuseas, dores de cabeça e vômito”.
Ao site “Século Diário”, Lauro Vieira disse em 2020: “Continua a proibição do uso de agrotóxicos em lavouras por aeronaves. Quem descumprir, será multado”, enfatizou o então prefeito, tecendo elogios à atitude do então padre da cidade. “A Câmara ouviu os dois lados, do povo e dos produtores que tinham interesse em usar os agrotóxicos. E chegou à conclusão que o padre tinha razão nas suas argumentações. Ele fez uma campanha bonita, de conscientização bonita, e isso tocou o coração de alguns vereadores que eram contra a lei”, relata.
De fato, Padre Romário personificou a luta, chegando a ser ameaçado durante o processo de discussão e votação da lei no Poder Legislativo municipal, tendo recebido solidariedade de dezenas de entidades e organizações de Agroecologia e Agricultura Orgânica de todo o Estado reunidas na Comissão de Produção Orgânica do Espírito Santo (CPOrg).
O agrotóxico mais usado na região era o Round Up, da Monsanto. O produto é feito à base de Glifosato, pesticida mais vendido no Brasil e no mundo. Em 2015, após diversos estudos, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) classificou o produto como provavelmente carcinogênico para humanos.
A Agência Pública e a Repórter Brasil denunciaram, em março deste de 2020, um caso de intoxicação crônica por Round Up que também ocorreu em Boa Esperança, na década de 1990. O agricultor Sebastião Bernardo da Silva, 68, teve o primeiro diagnóstico de intoxicação há 23 anos, e hoje convive com diversas doenças como esquizofrenia, epilepsia e depressão. Laudos médicos comprovaram a relação das doenças com o contato diário com o herbicida, que ele aplicava em uma lavoura de café.
A decisão da população de Boa Esperança é mal vista pelas empresas de aviação agrícola, que claro, defendem seus interesses. Em 2020, o então presidente do sindicato da aviação agrícola, o Sindag, Thiago Magalhães, disse ao site “Repórter Brasil”, que as proibições municipais só ocorrem porque a pulverização aérea foi transformada no símbolo dos agrotóxicos. “As pessoas não são contrárias aos aviões, mas sim aos agrotóxicos. E quando se pensa neles a imagem que se tem é a da de um avião pulverizando uma plantação. Somos o único meio com regulamentação própria, com lei própria. Estão tentando acabar com 2 mil aviões no Brasil, mas ignoram 500 mil tratores agrícolas e um milhão de bombas costais”.
Em tempo, apelar ao Judiciário é apenas o recurso final das entidades do agronegócio: geralmente o lobby consegue arquivar a proibição à pulverização aérea ainda nas casas legislativas. Um levantamento feito pelo Sindag conta que houve 18 projetos de lei arquivados, sendo 13 de âmbito estadual.
Lutas municipais
Boa Esperança foi o quarto município capixaba a proibir a pulverização aérea de agrotóxicos. Os primeiros foram Vila Valério, Nova Venécia e Jaguaré, todos no norte do Estado. Em Nova Venécia, a polêmica em curso em 2020 envolvia a tentativa de alguns vereadores de modificarem a lei municipal de proibição, de forma a permitir o uso de drones para pulverização dos venenos. Em uma audiência pública ocorrida na época, os agroecologistas da região expuseram os perigos de se modificar ou revogar a lei, relembrando casos já registrados de contaminação de pessoas, lavouras, escolas e comunidades inteiras, incluindo bairros urbanos.
*Com informações de “Repórter Brasil” e “Século Diário”