domingo, outubro 6, 2024
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Por que a “ilha de paz” da América do Sul virou um dos países mais violentos do mundo

Como o Equador viu a paz se transformar em um inferno

*Maria Fernanda Noboa Gonzalez / The Conversation

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Quem poderia imaginar? A famosa frase dita pelo ex-presidente do Equador Rodrigo Borja Cevallos em 1991, na Conferência da Paz para o Desenvolvimento, e repetida dez anos depois pelo ex-presidente Gustavo Noboa Bejarano em seu Relatório à Nação de 2002, de que o Equador é uma “ilha de paz” no mundo, perdeu completamente o sentido, e de forma perturbadora, neste começo de terceira década do século 21.

Pois o Equador se tornou, inesperadamente, um dos países mais violentos do mundo, rotulado pela ONU como um país “sob estresse”.

De acordo com o Índice Global de Crime Organizado de 2023, realizado pela organização independente Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transnacional, o país está classificado como o 11º mais violento do mundo, ao lado de Síria, Iraque e Afeganistão.

O péssimo ranking é complementado pelo 96º lugar no mundo entre 146 países (23º entre 32 em nível regional) no Índice de Estado de Direito 2023 (World Justice Project) de 2023 – um documento que monitora e avalia fatores como limites de poder ao governo, ausência de corrupção, abertura política, direitos fundamentais, ordem e segurança, conformidade regulatória, justiça civil e justiça criminal.

Menos de cinco anos atrás, em 2019, o Equador ainda era considerado um dos países mais seguros da América Latina, com uma taxa de 6,7 mortes violentas por 100.000 habitantes. Hoje, o país beira uma taxa de 45 mortes por 100.000 habitantes.

Vídeo da Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transacional com os resultados do Índice Global do Crime Organizado 2023.

Isso em meio a um cenário caótico de governo desordenado em que coexistem simbiótica e contraditoriamente grupos mafiosos consolidados, quadrilhas criminosas, bandos criminosos, máfias, cartéis transnacionais, gangues, atores criminosos penetrados no Estado e criminosos comuns, todos legitimados em estruturas ecossistêmicas, se fizermos alusão ao mundo líquido em que vivemos atualmente. Em outras palavras, um mundo em que o sólido foi superado para se tornar um ambiente moldável, mutável, fluido, volátil, incerto e vertiginoso.

Esses atores, por meio de sistemas de conexões relacionais ou dutos subterrâneos, estão vinculados aos mercados criminosos existentes no Equador, entre eles
tráfico de drogas, tráfico de armas, tráfico de vacinas, mineração ilegal, tráfico de pessoas, crime cibernético, corrupção de colarinho branco, e tráfico de recursos naturais.

Economia do tráfico de drogas comanda o crime no país

No entanto, a variável desencadeadora desse fenômeno de violência e insegurança no país, considerado o músculo das atividades criminosas, é a economia política do tráfico de drogas. E não apenas de cocaína, mas também de heroína e, mais recentemente, a destruidora droga sintética fentanil.

A narcotização da economia criminal se deve a vários elementos: a localização do país, já que o Equador está no meio dos maiores produtores de cocaína do mundo; a economia dolarizada, que é atraente para a lavagem de dinheiro; a baixa resiliência dos instrumentos e instruções de controle do Estado no mapeamento e monitoramento das diversas rotas de transporte aéreo, marítimo e terrestre de drogas dentro e fora do país; causas estruturais, como desemprego e emprego informal, sociedades com desenvolvimento desigual e não inclusivo; e a forte influência da mídia, especialmente das redes sociais, no grupo populacional dos millennials e centenials, que cada vez mais seduzem-se pela “cultura do narcotráfico” como um modelo de liderança, poder e dinheiro fácil.

Entre os muitos fatores que desencadearam a atual crise sistêmica de segurança está a redução do orçamento do governo central para a renovação do sistema penitenciário do país há vários anos. Assim, durante 2014, explodiu a crise no investimento social, que aumentou em 2020 com a pandemia, o que levou à demissão de agentes penitenciários e à eliminação de diretorias no setor de justiça. De fato, no governo do ex-presidente Lenin Moreno, o Ministério da Justiça, Direitos Humanos e Culto foi eliminado, criando a Secretaria de Direitos Humanos e o SNAI.

Tudo isso levou a uma falta de clareza no gerenciamento dos graves problemas carcerários e ao aumento da superlotação de PPLs (pessoas privadas de liberdade) nos 34 centros de detenção. E diluiu a possibilidade de se pensar na construção de um modelo penitenciário adequado, abrindo a possibilidade de as prisões se tornarem centros de articulação para vários crimes que, com o tempo, se tornaram retaguardas estratégicas para os chefes do tráfico.

Divisão internacional do trabalho criminoso

Estes chefes formaram alianças estratégicas – como braços operacionais – de cartéis transnacionais de drogas, a fim de receber benefícios econômicos da divisão internacional do trabalho criminoso, mas também profissionalização na gestão de mercados criminosos, especialização em tarefas criminosas (custódia, extorsão, lavagem de dinheiro, mineração ilegal, entre outras) e preparação tática, tais como: formação de assassinos primários e profissionais, especialistas em explosivos, especialistas em inteligência e contrainteligência criminal e comunicação de guerrilha, feita com auxílio de grafiteiros de apoio em todo o país.

Como as prisões se tornaram espaços para a expansão da economia criminosa – a maior parte da violência expressa em sequestros, assassinatos macabros, carros-bomba, midiatização por redes de atos violentos – pode-se dizer hoje que as prisões de fato contribuem para a consolidação de empreendimentos criminosos nas ruas. O que pode ser bem exemplificado pela expressão cada vez mais popular no país, na qual se diz que “é mais seguro viver nas prisões do que nas ruas”.

Não obstante, a violência gerada de dentro para fora das prisões também se reflete dentro do sistema carcerário. Isso tem sido evidente nas recentes rebeliões em presídios, cada vez mais constantes desde a pandemia de Covid: desde 23 de fevereiro de 2021 até hoje, houve 11 massacres em prisões com 412 mortes em seis prisões de cinco cidades do país.

Durante esse tempo, graças às ações de midiatização terrorista, tornaram-se comuns transmissões ao vivo pela internet de massacres, com exibição ao vivo de desmembramentos, cadáveres decapitados ou sem membros e órgãos vitais expostos em pontes e locais públicos, e outros horrores.

Lógica de violência com raízes religiosas

Essas técnicas são o produto de grupos mafiosos locais que aprenderam com as práticas dos cartéis transnacionais colombianos e mexicanos. Os sinais mais grosseiros de violência vêm dos grupos signatários da Nova Geração do Cartel de Jalisco, considerados os Mata Zetas, grupos armados de elite com treinamento militar – inclusive nos Estados Unidos – e suas operações de comando e sobrevivência respondem a lógicas culturais religiosas, que incluem canibalismo e a adoração ao culto da Santa Muerte, dois elementos que influenciam essas práticas arrepiantes de violência.

Todos esses elementos, em conjunto, têm enquadrado as coordenadas de vários outros tipos de violência, como a violência de gênero. Especialmente em crimes como o feminicídio e o suicídio entre menores de idade – que escalaram para indicadores irreversíveis por meio de algumas dinâmicas:

1) Ações mais violentas contra a sociedade em resposta às ações do Estado de neutralização e contenção por meio do uso da força legítima. Por exemplo, quando foi emitido o Decreto Executivo 707 (1º de abril de 2023), que facilitou o porte e o uso de armas por civis, os grupos criminosos intensificaram seus ataques, especialmente os assassinatos violentos de alvos específicos por meio de assassinos contratados especializados, com armas militares compradas no mercado ilícito.

É surpreendente que até hoje a existência de quatro notórias escolas de assassinos de aluguel – localizadas nas cidades de Durán, Manta, Lago Agrio e Esmeraldas – não tenha sido formalmente denunciada.

Escolas de assassinato

Informações de fontes fechadas indicam que, nessas escolas, os assassinos júnior, médio e sênior são promovidos e, dependendo de sua experiência em termos de número de mortes, cumprimento estrito de ordens e nível de importância dos alvos, seus salários variam entre US$ 200 e US$ 10.000.

A formação e o treinamento desses assassinos – entre 6 meses e 1 ano – não são necessariamente feitos pessoalmente, mas virtualmente, por meio de videogames de desafio em redes com a intenção de perder o medo e o remorso. Trata-se de uma preparação psicológica prévia, especialmente para os jovens que, devido às condições estruturais de pobreza, desemprego e falta de oportunidades de estudo, são facilmente cooptados para o exercício de serviços de assassinato para os diversos grupos mafiosos.

Outro sinal do recrudescimento destas respostas da criminalidade contra o Estado é o fato de o presidente Noboa ter emitido, no último dia 8 de janeiro, o Decreto Executivo 110, determinando Estado de Emergência com toque de recolher em todo o país, após a fuga do líder máximo do maior grupo criminoso do país, Los Choneros, que resultou em ataques com explosivos, sequestros e detenções de membros das forças de segurança e guias penitenciários. Uma franca demonstração do poder de fogo da criminalidade contra o aparato de força do Estado. E que se tornou, mais que uma afronta, uma guerra entre o crime e o Estado por territórios e populações.

Outro elemento importante e gravíssimo desse contexto são os mecanismos de cooptação cada vez mais poderosos dos habitantes das áreas mais fragilizadas economicamente, que são forçados (seja por ameaça ou por necessidade financeira) a tornarem-se parte da dinâmica criminal.

Um narcoestado em gestação

Nesse sentido, a tomada de decisões em níveis subnacionais e territoriais é dirigida por grupos criminosos que afetam governos seccionais, municípios e prefeituras para consolidar espaços de legalidade criminosa (espaços pintados como legais, mas que escondem atividades ilegais) e avançar em seus objetivos estratégicos de finalmente consolidar um narcoestado.

Por fim, entre assassinatos macabros, sequestros e narrativas de medo, os cidadãos sobrevivem diariamente a um cenário de horror. Com altos níveis de estresse emocional devido à variedade de violência. O que os obriga a mudar as rotinas de vida, os espaços de distração ou fazerem confinamento forçado, para evitar serem vítimas de uma atmosfera de insegurança e desconfiança em relação a tudo e a todos. Uma percepção que segue sendo ampliada pela ação da mídia e das redes sociais, cujos discursos e narrativas muitas vezes reproduzem tais fenômenos sem os devidos compromissos de ética jornalística e responsabilidade social.The Conversation

Texto escrito por Maria Fernanda Noboa Gonzalez, Doutora em Estudos Internacionais, Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO)  – Equador

Este artigo foi republicado de The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.

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